Anterior: Uma Rotina Incansável – II
Seu pai chegou, com um sorriso que tanto conhecia, Juliana o viu batendo vagarosamente no vidro. A chuva havia parado.
Ela trouxe consigo um guincho, já estava acostumado com sua filha ligando pedindo socorro.
Juliana deixou que o carro fosse levado diretamente para a oficina, foi para casa no carro do pai e durante o caminho permaneceu quieta e pensativa, que diabos aquele velho quis dizer? Era só o que faltava.. um velho, de mais de 60 anos, que só porque é bem disposto e deve fazer alguns exercícios físicos, acha que uma garota de menos de trinta vai dar bola pra ele. Bufou, ô vida, agora era cantada por velhinhos metidos a garotão.
Seu pai riu, Juliana estava com uma cara de revolta daquelas que as mulheres fazem antes de dar uma bolsada em alguém.
– Alguma coisa errada Ju?
– Nada pai, nada.
– O fato de você falar que não tem “Nada” errado, só me convence que tem alguma coisa errada. Não se esqueça que convivi com vc, com sua mãe e com suas 3 irmãs a vida toda, fora as minhas 2 irmãs e minha mãe… sou um expert em mulheres.
– Verdade, só assim pra você aguentar a mãe mesmo.
– Não seja má, – disse ele rindo, sabia que sua esposa não era nada fácil – ela só quer seu bem. E não muda de assunto, estávamos falando de você.
– Olha, chegamos! – Juliana já tirava o cinto e se preparava para descer – Beijo pai, te amo, não precisa se preocupar, só estou um pouco nervosa, o carro quebrou de novo, vou ter que ir de ônibus trabalhar amanhã, enfim, nada muito agradável.
Disse essas últimas palavras sobreponde uma a outra, o que deixava muito claro para seu pai que ela estava nervosa, mas não nervosa no sentido de stressada, como ele já tinha visto algumas vezes durante esse mesmo ano, um nervoso que chegava a deixar sua menina doente, ela estava nervosa porque alguém mexeu com seu orgulho, seu âmago, resolveu não se intrometer, se ela precisasse, sabia que seria procurado.
Juliana pisava forte, continuava a fazer cara de mulher enfezada, que pode a qualquer momento explodir com você porque, por acaso, você espirrou/tossiu/falou alto/falou baixo/riu/chorou/respirou perto dela.
– Que Droga!
A chave caiu ao chão antes que ela pudesse abrir a porta do apartamento. Estava com raiva, odiava não entender as coisas que as pessoas falavam, se sentia mal até mesmo quando não entendia uma piada, ou mesmo quando não ouvia algum comentário do qual todos estavam rindo. Realmente, não saber direito o que estava acontecendo a pertuva mentalmente de um jeito quase que doente.
Se surpreendeu pois depois de muito tempo, era a primeira vez que não sentia aquele aperto no peito, aquele tristeza quase que mórbida que a levava a praticamente não sorrir. Mas logo entendeu, era tudo culpa da adrenalina, logo que se conformasse que se deparou com um velho maníaco que saía cantando garotinhas desprevenidas que estavam dentro de carros quebrados, a adrenalina acabaria, e tudo voltaria ao normal.
Estava morrendo de fome, mas também estava cansada e com uma preguiça enorme de cozinhar, nada como um miojo, a janta perfeita, ainda mais se você vai dormir logo, assim não dá nem tempo de sentir fome de novo.
Colocou o miojo no fogo e ligou a tv, sabia que não teria nada de útil, mas se sentiu na obrigação de ligar, não pagava uma fortuna de tv a cabo para não assisti-la.
5 minutinhos e o jantar estava pronto, se aconchegou no sofá e começou a passar os canais.
Novela das 8… não, novela mexicana… não, reality show com mulheres mostrando a bunda… não, assembléia do senado… não, pastor evangélico… não, seriados americanos repetido… até que é aceitavel, mas não, “O Diário da Princesa”… de novo não – mas por precaução gravou mentalmente o número do canal, nunca se sabe o que os próximos canais reservam – documentário sobre Anjos, hum, melhor que “O Diário da Princesa”, resolveu deixar por aí mesmo pelo menos garantiria bons sonhos – preferia sonhar com Anjos do que com a princesa Mia.
Apareceu uma mulher de pele alva e cabelos escuros, a dublagem era bem tosca, como na maioria dos documentários, a voz então, estridente, resolveu tirar da dublagem e deixar legendado, aproveitaria para treinar seu ouvido no inglês.
A mulher falava de um encontro, com uma garota, de mais ou menos 15 anos.
-“Em um dia, logo pela manhã quando saía para trabalhar encontrei com ela. Normalmente não dou confiança à pessoas na rua, mas ela parecia bem simpática e começou a puxar conversa comigo. Ela dizia coisas que ninguém imaginaria ouvir de uma garota tão jovem. Começou me dando bom dia, conversamos sobre coisas fúteis até que ela começou a falar de como era difícil a perda de pessoas, mas que tudo era uma questão de perspectiva, pois se você aceitasse, seu coração viveria em paz, e a pessoa que se foi também estaria em paz. Ela falava de uma maneira engraçada, mas muito conclusiva e segura.”
A mulher na tv começou a chorar, se recompôs e continuou a narrativa:
– “Nesse mesmo dia recebi uma ligação, meu pai havia falecido. Tenho certeza que essa garota era um anjo, que veio me ajudar a passar por esse momento complicado da minha vida.”
A mulher na tv chorava copiosamente, a música de fundo dava um ar mais místico à história. Juliana assistia incrédula, não se sentia nem um pouco compelida a acreditar no que via na tv. Aquele tipo de declaração já tinha se tornado tão comum, pessoas que presenciam milagres, vêem anjos ou santos, que para ela, tudo isso já tinha caído na incredulidade.
A câmera cortou a mulher a agora aparecia um homem, também contava uma história sobre anjos, disse que passava por muitas dificuldades, e se encontrava muito machucado psicologicamente, quando encontrou na rua um outro homem, aparentando 35 anos, que mais parecia um mendigo bebâdo. Ao ser abordado o homem não deu atenção ao suposto mendigo, mas com a insistência que o mesmo tinha em segui-lo começou a ouvir as palavras que o maltrapilho lhe dizia.
-“Ás vezes, tudo o que a gente precisa, é olhar em volta, e ver o quanto o mundo nos dá. É verdade amigo, o mundo nos dá muito, só que sempre deixamos tudo de lado, só para falar o quanto estamos tristes, como se a nossa tristeza fosse a coisa mais importante do mundo… é, a mais importante! Mas sabe, não é, é que os seres humanos gostam de se fazer de vítima, gostam sim, eles querem que alguém venha, passe a mão em sua cabeça e faça algo para que os problemas se resolvam num estalar dos dedos. Mas sabe amigo” – nesse momento o homem interrompeu a narrativa, dizia que o bêbado parara de falar mole, de cambalear, e o pegara pelo ombro até que eles estivessem frente a frente, olho no olho. Continou a narrar. ” – Mas sabe amigo, você é mais do que isso, suporta mais do que pensa, é mais forte do que imagina, e se olhar dentro de você verá que está tudo apenas começando, e o que você precisa é coragem e fé para continuar.”
O homem disse que ficou assustado com o que ouviu, se desprendeu do mendigo, e andou rapidamente, querendo ir embora, ao olhar para trás o mendigo sorriu, piscou e curvou o tronco, como um ator agradece à platéia no final do espetáculo. Depois disso tudo, do toque no ombro, das palavras que ouviu, o homem disse ter certeza que havia conversado com um anjo, e que ele lhe tirara todo o mal que tinha no coração.
Juliana desligou a televisão, não acreditava naquilo, na verdade, não acreditava, mas também não deixava de acreditar, preferia deixar os anjos junto com várias outras coisas que acontecem e que não tem explicação, em uma fenda no tempo e espaço, um tipo de universo paralelo que ela criou, e que era onde colocava as coisas que ela simplesmente não questionava.
Tomou um banho e foi deitar-se. Quando encostou a cabeça no travesseiro pensou no velho e naquele elogio estranho, quer dizer, dizer que você é bonita, charmosa, isso é um elogio normal, mas iluminada, não era mesmo, por acaso tenho cara de lâmpada?
Riu de si mesma, e deu um sorriso ainda mais largo quando pensou: “De repente, ele é um anjo.”.
Adormeceu, mas diferentemente daquela tarde, ou de tantos outros dias, não adormeceu encolhida, com vontade de chorar, sentia seu coração quente, sua alma calma e uma tranquilidade que só se lembrava de ter quando era criança, nas noites mais frias, quando sua mãe preparava um leite quente e levava na cama, depois a cobria e apertava os cobertores para que ela parecesse com um pacotinho daqueles que se mandam pelo correio e ficava lá, acariciando seus cabelos até que ela dormisse.